Aprovação do PL da devastação (PL 2.159/2021) será um retrocesso na avaliação de impactos ambientais e culturais

Servidores e servidoras do Iphan divulgam sua preocupação com recente aprovação, no Senado Federal, da chamada Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021), pois o texto aprovado configura um grave retrocesso na avaliação preventiva de impactos ambientais e culturais causados por empreendimentos, na mesma semana em que se celebrou o Dia Mundial do Meio Ambiente.

Eles pedem apoio da sociedade civil, fóruns, entidades, profissionais do campo do patrimônio e dirigentes do Iphan, para pressionar a Câmara dos Deputados a não pautar o PL 2.159/21, e que seja elaborado um novo texto, discutido com a sociedade.

Vamos lutar em defesa do meio ambiente e do Patrimônio Cultural Brasileiro!

 

Leia abaixo a íntegra da manifestação.


Resposta ao PL da devastação (PL 2.159/2021)

 

Na semana em que se celebrou o Dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho, paradoxalmente nos vemos diante de uma ameaça concreta à sua preservação. Nós, servidoras e servidores do Iphan, ecoamos a preocupação de entidades representativas da sociedade civil diante da recente aprovação, no Senado Federal, da chamada Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 2.159/2021). Longe de representar um avanço, o texto aprovado configura um grave retrocesso na avaliação preventiva de impactos ambientais e culturais causados por empreendimentos, justamente no momento em que deveríamos reafirmar nosso compromisso com a proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural brasileiro.

Um dos graves problemas do texto aprovado está justamente relacionado à participação do Iphan nos processos de Licenciamento Ambiental e ao desmonte da proteção do Patrimônio Cultural brasileiro nesses processos, com questões críticas nos artigos 38, 39 e 40 do projeto.

Dentre os bens culturais afetados com a aprovação do PL estão o Patrimônio Cultural Imaterial e o Patrimônio Arqueológico, representativos da identidade e da memória dos grupos sociais que formam a diversidade cultural do Brasil, especialmente dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Não obstante, os bens materiais tombados e valorados cujas poligonais de tombamento e/ou entorno ainda não tenham sido georreferenciadas também podem ser impactados.

Apenas no ano de 2024 o Iphan participou do Licenciamento Ambiental de 4.960 empreendimentos em todo o país, que geraram 2.255 pesquisas de avaliação de impacto ao Patrimônio Arqueológico; 162 ao Patrimônio Imaterial e 91 ao Patrimônio Tombado/Valorado, reduzindo, compensando ou até evitando danos ao patrimônio cultural na implantação dos empreendimentos. Vale destacar que a instituição é responsável de maneira exclusiva pela tutela do patrimônio arqueológico no Brasil.

O art. 38, inciso I, determina que a decisão das Autoridades Envolvidas, como o IPHAN, não vincula a decisão da autoridade licenciadora. Ou seja, na eventualidade do IPHAN se manifestar contrariamente à viabilidade de um empreendimento, por gerar grandes impactos negativos ao Patrimônio Cultural, ainda assim o órgão licenciador poderá autorizar a sua construção.

O inciso II do art. 39 e o inciso II do art. 40 do PL da Devastação restringem a participação do Iphan somente para os casos em que houver intervenção em bens tombados, arqueológicos, imateriais ou valorados na Área Diretamente Afetada (ADA) e/ou na Área de Influência Direta (AID) do empreendimento. O PL desconsidera que a grande maioria dos bens culturais hoje conhecidos foram identificados e/ou avaliados em pesquisas realizadas no âmbito do Licenciamento Ambiental.

Destaca-se também que o tombamento dos documentos e sítios detentores das reminiscências históricas dos antigos quilombos, previsto na Constituição Federal e cujo reconhecimento é de responsabilidade do Iphan, foram excluídos dos critérios para participação do órgão no Licenciamento Ambiental, prejudicando ainda mais a proteção do Patrimônio Cultural associado a comunidades historicamente marginalizadas.

Essa limitação compromete de forma substancial a atuação preventiva do IPHAN, que é fundamental para a identificação, salvaguarda e preservação dos bens culturais antes da ocorrência de danos. Isso contraria os princípios consagrados nas cartas patrimoniais internacionais das quais o Brasil é signatário — principalmente a Carta de Veneza (1964), a Convenção do Patrimônio Mundial (1972), Carta de Burra (1979), entre outras.

A potencial destruição do patrimônio cultural brasileiro, causada pela aprovação do PL 2.159/2021, pode ser antecipada pelos indicadores da Arqueologia. Das 2.299 pesquisas arqueológicas autorizadas pelo Iphan em 2024, 2.255 (98%) foram realizadas nos processos de Licenciamento Ambiental de empreendimentos.

Esse é o caso, por exemplo, do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, um dos principais portos de desembarque e comércio de pessoas negras escravizadas nas Américas. O sítio arqueológico, que hoje é reconhecido como Patrimônio Mundial pela UNESCO, foi descoberto durante pesquisa arqueológica realizada no âmbito do Licenciamento Ambiental, no ano de 2011. Outro exemplo mais recente foi a identificação do sítio arqueológico Saracura-Vai-Vai, durante a pesquisa executada no Licenciamento Ambiental do Metrô de São Paulo, com mais de 50 mil vestígios associados a diferentes períodos de ocupação negra.

As pesquisas realizadas no âmbito do licenciamento ambiental possuem resultados científicos de grande relevância, conforme pode ser constatado em periódicos nacionais e internacionais. Um exemplo notável é o sítio Sambaqui da Amizade, em Jaguaruna/SC, onde foram encontradas fibras vegetais trançadas preservadas — um achado extremamente raro, especialmente em contextos arqueológicos dessa tipologia, possível graças à atuação do Iphan e que hoje é objeto de estudos no Brasil e no exterior. No Maranhão, o IPHAN participou ativamente na descoberta do Sítio Arqueológico Chácara Rosane, em São Luís/MA, onde foram encontrados 43 enterramentos humanos e mais de 100 mil vestígios pré-coloniais.

Foi através das pesquisas arqueológicas no Licenciamento Ambiental que foram identificados quase a totalidade dos 1.643 sítios arqueológicos cadastrados pelo Iphan no ano de 2024. Sítios até então desconhecidos, que poderiam ser destruídos caso não houvesse a participação do Iphan no processo e a realização de estudos e ações preventivas. Esse cenário foi visto diversas vezes na história brasileira, seja com a destruição dos sambaquis em São Paulo, Paraná e Santa Catarina na primeira metade do século passado ou com a destruição de dezenas de milhares de sítios arqueológicos na Amazônia durante o período da ditadura militar.

O texto do PL 2.159/2021 cria, ainda, uma limitação geográfica para atuação do Iphan, excluindo 2.786 municípios que não possuem bens culturais acautelados em seu território, de um total 5.570 municípios brasileiros. Não haveria, assim, previsão legal para participação do Iphan no Licenciamento Ambiental de empreendimentos em metade das cidades do país, o que, por sua vez, aumentaria o risco de ser gerado um entendimento falso acerca da distribuição geográfica do Patrimônio Cultural no país, uma vez que apenas os locais que já foram mais estudados continuariam a ter pesquisas no âmbito do licenciamento. O patrimônio e a memória são pilares que fundamentam a identidade, e dessa forma o PL prejudica os municípios também dentro de sua própria coesão social e acesso à Cultura.

A restrição da atuação do Iphan nos processos de licenciamento ambiental nos termos propostos no PL inverte a lógica da preservação, que deve ser preventiva e não corretiva. Isso enfraquece, de forma direta e definitiva, os esforços historicamente empreendidos pelo Iphan no âmbito do licenciamento ambiental, que têm resultado na identificação de milhares de sítios arqueológicos e na construção de soluções conjuntas pautadas pelo equilíbrio entre a preservação cultural e o desenvolvimento econômico.

Também é importante lembrar que, nos termos da Constituição Federal e da Lei nº 3.924/1961, a proteção dos sítios arqueológicos se dá de forma compulsória. Ou seja, mesmo antes de serem conhecidos os sítios já são protegidos como parte da memória do Brasil. Assim, constata-se uma grave ameaça e um retrocesso nas políticas públicas relativas à proteção do patrimônio cultural como bem jurídico que integra o meio ambiente de maneira indissociável.

Cabe explicar que a exclusão da análise preventiva do Iphan dos processos de Licenciamento Ambiental não exime os empreendedores da responsabilização administrativa, civil e criminal pela eventual destruição de bens culturais. A aprovação do PL 2.159/2021, portanto, pode gerar grande imprevisibilidade jurídica para os empreendedores brasileiros, prejudicando enormemente o ambiente de negócios do país e a consecutiva atratividade de investimentos de capital externo, especialmente em obras de infraestrutura.

Ou seja, na forma como foi redigido, o texto do PL tende a reduzir o papel institucional do Iphan ao exercício reativo de seu poder de polícia administrativa, atuando apenas após o dano ao patrimônio ter ocorrido — muitas vezes de forma irreversível. Tal imprevisibilidade jurídica decorre do fato de que a identificação de bens culturais durante as obras pode resultar em paralisação do empreendimento, exigindo avaliações e pareceres que implicam em atrasos e custos adicionais. Além disso, no caso de efetivação de dano ao Patrimônio Cultural, as obras podem ser embargadas até a conclusão dos processos judiciais e podendo, até, inviabilizar empreendimentos. Trata-se de um cenário indesejável para todos os envolvidos, que poderia ser amplamente evitado mediante a devida inserção do IPHAN de forma integrada e preventiva no processo de licenciamento ambiental, conforme prevê atualmente a legislação nacional e os compromissos internacionais assumidos pelo país.

Assim, pedimos apoio da sociedade civil, fóruns, entidades, profissionais do campo do patrimônio e dirigentes do Iphan, de modo que exijamos que a Câmara dos Deputados não paute o PL 2.159/21 e que haja elaboração de um novo texto, amplamente discutido com a sociedade, em defesa do meio ambiente e do Patrimônio Cultural Brasileiro!

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